Tecnologia pode afetar nossa capacidade de resolver problemas complexos, como o desafio de líderes de conectarem agentes, recursos e competências de um ecossistema, aponta Sandro Magaldi, especialista em transformação de negócios sob os pilares de gestão estratégica, liderança e cultura organizacional
Quando iniciei minha trajetória profissional como vendedor, no início dos anos 90, adquiri, por dever do ofício, uma incrível capacidade de memorizar a localização de ruas e caminhos. Meu “Guia de Ruas Mapograf’ sempre estava a postos, mas raramente recorria ao diretório.
Me recordei dessa experiência recentemente quando fui abordado no trânsito por um jovem, desnorteado, que me pediu ajuda para encontrar uma rua localizada a poucas quadras de onde estávamos, pois a bateria de seu celular tinha acabado e ele não conseguia acessar o Waze.
Nesse momento me dei conta que há uma geração inteira que aprendeu a se locomover na “Era do Waze”. Essa turma não tem em seu repertório o recurso de se dirigir ao posto de gasolina mais próximo para obter informações de trânsito, já que a tecnologia se transformou em um de seus melhores amigos.
Confesso que minha capacidade de me locomover autonomamente pelas ruas de São Paulo também ficou comprometida, pois é muito mais fácil recorrer à tecnologia que está sempre à mão — literalmente.
As maravilhas das novas tecnologias nos deixam estupefatos e mudam nossa rotina. A bola da vez agora é a inteligência artificial generativa. É ou não é uma maravilha ter todas as perguntas respondidas pelo ChatGPT? Esse é outro cara que está se transformando em meu melhor amigo, pois tem todas as respostas na ponta da língua (ou da tela?).
Recentemente, o Google informou que o Bard, sua aplicação de Inteligência artificial, está testando uma funcionalidade em que interpreta um texto complexo, transforma seus principais pontos em tópicos e extrai as principais perguntas que o conteúdo endereça. É ou não é outra maravilha da modernidade? Não precisarei mais interpretar textos complexos nem refletir sobre as principais lições. Tudo virá “mastigadinho”. Que espetáculo, não é?
Só que não. Não estamos nos dando conta que essa é uma das facetas da ambiguidade da contemporaneidade: ao mesmo tempo em que a tecnologia facilita o acesso ao conhecimento, ela pode atrofiar nossa capacidade cognitiva.
Contextualizando essa visão: cognição é o processo de construção do conhecimento, que todo ser humano utiliza, e nossa capacidade cognitiva é o veículo para que ela aconteça. De forma bastante simplificada, o cérebro recorre a essa capacidade para memorizar, raciocinar, ler e, sobretudo, aprender.
Ou seja, o comprometimento da capacidade cognitiva resulta em um impacto determinante na habilidade de aprendizagem do indivíduo.
Deu para entender o tamanho do problema?
O desafio de ligar os pontos
No livro “Liderança Disruptiva”, que escrevi a quatro mãos com José Salibi Neto, definimos, como fruto de nossos estudos, que uma das competências centrais que todo líder deve desenvolver é a sua capacidade de conexão. Para tangibilizar essa tese criamos a alcunha do “Líder Conector”, cujo representante mais emblemático é Steve Jobs.
O fundador da Apple se autodenominava como o CIO de sua empresa: o Chief Integration Officer, algo como o chefe da integração da companhia. Um dos seus discursos mais célebres foi realizado para formandos da Universidade de Stanford e tem como título a expressão “Connecting the Dots” (algo como “Ligando os Pontos”).
A dinâmica que justifica essa competência está relacionada a um ambiente cada vez mais multifacetado, complexo e interdependente. Nesse contexto, a capacidade de adotar uma visão sistêmica, que permite conectar os principais agentes, recursos e competências de um ecossistema, é um dos imperativos para que o indivíduo obtenha sucesso.
Vamos então ligar os pontos (ops!): essa competência está ou não intimamente relacionada à capacidade cognitiva do indivíduo?
É óbvio que sim.
Então, observe a alarmante ameaça com a qual nos defrontamos nesse contexto. O ambiente requer cada vez mais pessoas que tenham a capacidade de lidar com demandas complexas e de gerar respostas originais e criativas. Por outro lado, corremos o risco de termos seres autômatos, que perderam sua capacidade de desenvolvimento cognitivo por não precisarem mais raciocinar em profundidade rotineiramente.
Ao longo das últimas décadas, inúmeras promessas das tecnologias, como o maior empoderamento do ser humano, o aumento da inteligência coletiva e a democratização da informação, dentre outras, foram caindo por terra, uma a uma, devido à profunda inabilidade de utilizarmos os novos recursos em prol do incremento do potencial de cada indivíduo.
Será que estamos diante de mais uma falácia e a inteligência artificial resultará em um maior emburrecimento do ser humano?
Só o tempo e o próprio ser humano responderão a essa indagação.