Afroempreendedorismo feminino: desafios, caminhos e potência transformadora

Scarlett Cunha, gerente do Instituto Rede Mulher Empreendedora (RME) e fundadora da Sociedade Consciente / Foto: Divulgação
Scarlett Cunha, gerente do Instituto Rede Mulher Empreendedora (RME) e fundadora da Sociedade Consciente / Foto: Divulgação

Apesar de representarem um dos maiores grupos demográficos do país, as mulheres negras continuam enfrentando barreiras estruturais que limitam seu potencial no ecossistema empreendedor brasileiro. Dados recentes mostram que quase metade das empreendedoras negras fatura até R$ 2 mil por mês e mais de 60% trabalham sozinhas. Para Scarlett Cunha — doutoranda em Políticas Públicas pela Universidade Federal do ABC (UFABC), especialista em Direito Constitucional, gerente do Instituto Rede Mulher Empreendedora (RME) e fundadora da Sociedade Consciente — esses números escancaram desigualdades históricas e pedem soluções urgentes.

“Se o Brasil tivesse um rosto, ele certamente teria o rosto de uma mulher negra. No entanto, quando olhamos para os espaços de decisão e acesso a oportunidades, onde essas mulheres estão? Ainda nas margens”, afirma Scarlett, em entrevista ao Universo do Seguro.

Estruturas que limitam o crescimento

Segundo a pesquisadora, o empreendedorismo feminino negro reflete as mesmas desigualdades estruturais que atravessam a sociedade. A dificuldade de acesso a crédito, a sobrecarga com os cuidados domésticos — principalmente entre mães solo — e a ausência de políticas públicas específicas são fatores que travam a expansão de seus negócios.

Dados do IBGE indicam que mais de 70% das mulheres negras dedicam a maior parte do tempo ao cuidado de outras pessoas. Na pesquisa do LAB IRME (2024), mais da metade das empreendedoras pretas e pardas são mães solo. “Como esperar que essas mulheres consigam escalar seus negócios se precisam dar conta de tudo sozinhas? Exigir crescimento sem oferecer estrutura é injusto e desleal”, critica Scarlett.

Ela reforça que é necessário abandonar a romantização da resiliência e do esforço individual dessas mulheres. “Elas não deveriam ter que ser heroínas. Precisamos de políticas públicas, redes de apoio e investimento direcionado para garantir que empreender seja uma escolha digna, e não a única saída possível”.

Quatro pilares para avançar

Para que o cenário mude, Scarlett defende corresponsabilidade entre governo, setor privado e sociedade civil. Ela destaca quatro caminhos prioritários:

  1. Crédito com olhar interseccional — Programas específicos voltados para mulheres negras, considerando contexto territorial e social.

  2. Educação empreendedora contínua — Capacitação prática e estratégica para formar líderes capazes de gerir recursos e enfrentar os desafios emocionais do negócio.

  3. Políticas públicas focalizadas — Ações que considerem a diversidade das realidades negras (urbanas, rurais, periféricas, quilombolas).

  4. Investimento em organizações da sociedade civil — Fortalecer coletivos e institutos que já atuam diretamente no apoio às empreendedoras.

“Segundo pesquisa do LAB IRME, 66% das empreendedoras negras apontam os coletivos e organizações como os principais agentes de apoio. Fortalecer essas instituições é investir diretamente em impacto positivo na vida de milhares de mulheres”, explica.

Crédito e racismo estrutural

Mesmo mulheres negras com alto grau de escolaridade e negócios consolidados enfrentam barreiras invisíveis ao buscar crédito. Para Scarlett, o racismo estrutural atua de forma silenciosa e persistente: exigências mais duras, juros elevados, desconfiança velada e julgamentos baseados no CEP de origem são recorrentes. “Na prática, o território pesa mais do que a capacidade de gestão. E a ausência de dados desagregados por raça e gênero sobre acesso a crédito dificulta a formulação de políticas eficazes. Sem diagnóstico, não há política pública eficiente”, alerta.

Scarlett Cunha antecipa que a pesquisa anual do Instituto RME, a ser lançada em 3 de outubro durante o Festival RME, trará informações inéditas sobre como as empreendedoras negras percebem o acesso ao crédito e como as instituições financeiras estão — ou não — respondendo a essa demanda.

Inovação e escalabilidade a partir das bordas

Os setores de alimentação, beleza e consultoria, que concentram a maior parte dos negócios de mulheres negras, são apontados como estratégicos pela especialista. Para que esses empreendimentos avancem, ela destaca a importância de acesso à tecnologia, ferramentas digitais, capacitação prática, mentorias, aceleração e educação financeira. Além disso, Scarlett defende que as cadeias de valor das grandes empresas devem abrir espaço para incluir essas mulheres como fornecedoras, consultoras e parceiras. “Esses setores carregam saberes ancestrais, criatividade e cultura. A inovação pode — e deve — vir das bordas”.

Afroempreendedorismo como motor de transformação

Para Scarlett Cunha, o empreendedorismo feminino negro não é nicho, mas pilar de desenvolvimento econômico e social. Estudos já indicam que o afroempreendedorismo movimenta quase R$ 2 trilhões por ano no Brasil. “O afroempreendedorismo feminino é potência coletiva. Quando uma mulher negra prospera, ela não muda só a própria vida, mas movimenta comunidades inteiras. Estamos falando de geração de renda, fortalecimento comunitário, educação e circulação local de recursos”, ressalta.

Na Conferência Livre do Ministério das Mulheres, realizada em agosto, 90% das participantes da sala de empreendedorismo eram mulheres negras. Em poucas horas, foram elaboradas mais de 15 propostas concretas para avançar a pauta. “Imagina o que podemos construir com espaço, investimento e escuta ativa?”, indaga Scarlett.

O futuro depende delas

Para a pesquisadora, não é possível pensar em justiça social ou desenvolvimento sustentável sem colocar mulheres negras no centro das estratégias. “Elas são o rosto do Brasil. Sem elas, não há futuro justo ou sustentável”, conclui.

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