Mesmo após um ano marcado por juros altos e tensões geopolíticas, os ativos financeiros das famílias recuperaram espaço globalmente, impulsionados por títulos e seguros, enquanto o mercado imobiliário e a desigualdade brasileira permaneceram sob pressão
Um surpreendente “alívio” marcou o cenário econômico mundial em 2023, conforme revela o “Relatório de Riqueza Global 2024” da Allianz, divulgado recentemente. Após um ano anterior marcado por forte aperto monetário e perdas nos mercados, as famílias em quase 60 países analisados registraram um crescimento de 7,6% em seus ativos financeiros. Este avanço não apenas compensou as perdas de 3,5% de 2022, como também levou o montante global a um patamar histórico de 239 trilhões de euros.
Ativos financeiros globais: reação robusta apesar do aperto monetário
O aumento foi impulsionado sobretudo por títulos (alta de 11%) e seguros/previdência (6,2%), que apresentaram desempenho superior à média da última década. Em contrapartida, os depósitos bancários, antes beneficiados pelos estímulos na pandemia, tiveram alta modesta de apenas 4,6% — um dos resultados mais fracos em 20 anos. Esse movimento aponta para um desinteresse renovado dos investidores pelos bancos, em um momento em que outras classes de ativos ofereciam oportunidades mais atraentes.
A recuperação da riqueza financeira foi generalizada, ficando restrita a apenas dois países (Nova Zelândia e Tailândia) que registraram taxas negativas. Destaca-se o desempenho equilibrado entre regiões, com a Ásia e a América do Norte avançando mais de 8%. Os Estados Unidos cresceram 8,6%, superando ligeiramente a China (8,2%). Essa proximidade, porém, evidencia um fenômeno mais amplo: a perda de fôlego das economias emergentes, cuja vantagem de crescimento sobre as avançadas encolheu para apenas 2 pontos percentuais em 2023 — uma realidade bem distinta daquela pré-2017, quando a distância superava 10 pontos percentuais.
“Esse arrefecimento do crescimento dos países mais pobres, em relação aos mais ricos, reflete um mundo mais fragmentado”, afirma Ludovic Subran, economista-chefe do Grupo Allianz. Para ele, as tensões comerciais e o progressivo desacoplamento entre grandes potências têm um preço: “Um mundo menos conectado é um mundo mais desigual”.
Depósitos bancários perdem o brilho
A normalização dos investimentos em 2023 levou ao declínio do que havia sido o “boom” de poupança da era pandêmica. O volume de novos investimentos recuou 19,3%, totalizando 3 trilhões de euros, efeito atribuído quase totalmente à redução na captação de depósitos bancários. Globalmente, os bancos receberam apenas 19 bilhões de euros em novos depósitos, queda de 97,7% em relação ao ano anterior.
As famílias norte-americanas foram as principais responsáveis por essa retração, sacando cerca de 650 bilhões de euros em depósitos. Enquanto isso, títulos voltaram à cena: as aplicações em papéis de dívida e renda fixa cresceram 10%. A alta das taxas de juros, embora tenha pressionado alguns segmentos, criou oportunidades em outras áreas, despertando o interesse em títulos públicos e privados. Já seguros e previdências mantiveram-se resilientes, refletindo a busca por proteção de longo prazo.
Endividamento em queda, ativos líquidos em alta
O impacto do aperto monetário mostrou-se mais evidente do lado dos passivos. O crescimento da dívida das famílias caiu para 4,1% globalmente — o menor índice em nove anos —, totalizando 57 trilhões de euros. Essa desaceleração foi mais aguda na Europa Ocidental e na América do Norte. Apesar disso, com a inflação ainda elevada impulsionando o crescimento nominal do PIB, o índice global de dívida (passivos em relação ao PIB) continuou em queda, atingindo 65,4%, o que é 3 pontos percentuais menor do que há duas décadas.
Como resultado da combinação entre a alta dos ativos e o menor crescimento dos passivos, os ativos financeiros líquidos globais subiram 8,8%, chegando a 182 trilhões de euros. Um montante quase 15 trilhões de euros superior ao de 2022 e 4 trilhões acima do recorde estabelecido em 2021.
Mercado imobiliário estagnado e desafios climáticos no horizonte
Se o mercado financeiro se recuperou, o setor imobiliário sentiu o peso das taxas elevadas. A valorização de imóveis ao redor do mundo foi de apenas 1,8% — a menor em uma década — e chegou a recuar 2,2% na Europa Ocidental. Essa lenta expansão reforça a tendência histórica de que os ganhos de capital em imóveis ficam atrás dos observados nos ativos financeiros.
Para o futuro, o relatório da Allianz alerta para o impacto das mudanças climáticas. Além das catástrofes naturais, a transição para edifícios sustentáveis deve pressionar ainda mais os valores. Projeções até 2050 indicam quedas de 20% ou mais nos preços de habitação em muitos mercados. Em âmbito global, o valor total dos imóveis poderia ser 30 trilhões de euros menor em cenários com políticas climáticas mais rígidas e eficientes.
“Os riscos físicos serão inevitáveis, mas os riscos de transição dependem de decisões políticas”, explica Hazem Krichene, coautor do relatório. “A Austrália, por exemplo, com políticas climáticas ambiciosas, pode minimizar o impacto sobre os preços dos imóveis. Outros países, caso não sigam o mesmo caminho, podem enfrentar perdas maiores — um alerta claro de que ainda é possível mitigar danos com ações eficazes”.
Brasil: impulso de seguros e previdência mantém ritmo de crescimento
No Brasil, os ativos financeiros das famílias cresceram 7,8% em 2023, após alta de 7% no ano anterior. O principal destaque foi o segmento de seguros e previdência, que avançou 10,2%. Essa classe de ativos, embora represente hoje 20% da carteira dos brasileiros (ante 28% em 2008), segue sendo o grande motor do crescimento local. Depósitos bancários (4,6%) e títulos (8,1%) apresentaram desempenhos mais modestos.
Em termos reais (descontada a inflação), a expansão foi de 3,1%. Apesar de modesta, ainda garante ao país um poder de compra 18,4% maior do que o registrado em 2019, pré-pandemia, superando a performance de muitas nações europeias. No entanto, a desigualdade permanece o grande desafio. No Brasil, os 10% mais ricos concentram 80% dos ativos financeiros líquidos, sem melhorias significativas nas últimas duas décadas.
No campo dos passivos, o crescimento do endividamento desacelerou, mas ainda ficou em 10,6%. O rácio da dívida subiu para 37%, próximo do pico de 2015, mostrando que as famílias brasileiras ainda carregam um nível considerável de compromissos financeiros. Em termos líquidos, houve avanço de 6,8%, levando a riqueza financeira per capita a 8.740 euros. Assim, o Brasil se mantém na 42ª posição entre os 20 países mais ricos (quando considerados no ranking global com outros mercados).
Ativos financeiros líquidos per capita em 2023
Em Euros | A/A em % | Classificação em 2003 | |||
1 | Estados Unidos | 260,320 | 9,8 | 2 | |
2 | Suíça | 255,440 | 2,5 | 1 | |
3 | Dinamarca | 172,200 | 4,3 | 15 | |
4 | Cingapura | 171,930 | 7,1 | 11 | |
5 | Taiwan | 148,750 | 9,9 | 10 | |
6 | Nova Zelândia | 127,430 | -1,3 | 6 | |
7 | Suécia | 125,660 | 10,6 | 14 | |
8 | Canadá | 123,130 | 7,8 | 9 | |
9 | Países Baixos | 117,280 | 9,8 | 5 | |
10 | Bélgica | 104,040 | 5,5 | 3 | |
11 | Austrália | 99,490 | 11,1 | 18 | |
12 | Japão | 91,940 | 6,2 | 4 | |
13 | Reino Unido | 80,110 | 1,4 | 8 | |
14 | Itália | 76,930 | 7,4 | 7 | |
15 | Irlanda | 74,450 | 5,2 | 16 | |
16 | França | 72,380 | 8,2 | 12 | |
17 | Áustria | 70,410 | 5,2 | 13 | |
18 | Alemanha | 69,060 | 9,2 | 17 | |
19 | Malta | 58,730 | 5,2 | 19 | |
20 | Espanha | 43,690 | 9,1 | 21 | |
42 | Brasil | 8,740 | 6,8 | 42 |
O Mapa interativo do Relatório de Riqueza Global pode ser encontrado aqui: https://www.allianz.com/en/economic_research/research-data/interactive-wealth-map.html.
Confira o estudo completo: https://www.allianz.com/en/economic_research.html.