A Lei nº 15.040/2024, que estabelece o novo Marco Legal dos Seguros, passa a valer a partir desta quinta-feira, 11 de dezembro de 2025, inaugurando uma nova fase para os contratos de seguro no Brasil. Enquanto parte do mercado destaca a promessa de maior clareza e equilíbrio nas relações entre seguradoras e segurados, a advogada Debora Schalch, referência em Direito Securitário e sócia na SSA – Schalch Sociedade de Advogados, faz um alerta contundente: o texto pode gerar efeitos contrários aos pretendidos, com risco de engessamento operacional, aumento de custos e intensificação de disputas judiciais.
O timing da mudança é sensível. O setor supervisionado pela Superintendência de Seguros Privados (Susep) encerrou 2024 com receitas de R$ 435,56 bilhões, alta de 12,2% sobre 2023, consolidando uma curva de expansão relevante. Já no primeiro trimestre de 2025, o faturamento geral do mercado alcançou R$ 188,8 bilhões (+5,9% na comparação anual) e os desembolsos com indenizações, resgates, benefícios, sorteios e despesas assistenciais somaram R$ 131,7 bilhões, crescimento de 11,4%.
Além da dimensão financeira, a capilaridade da distribuição também reforça o peso do marco regulatório. Dados divulgados a partir de estatísticas da Susep em 2024 indicavam 140.424 registros de corretores no país, com 131.446 ativos, sendo 56.627 corretoras (PJ) e 74.819 corretores pessoas físicas. São Paulo e Rio de Janeiro concentravam 52,4% desses profissionais.
“Já nasce desatualizada”
Na avaliação de Débora Schalch, a nova lei chega com vícios estruturais que acompanham o texto desde sua origem. “A nova Lei de Seguros, que entrará em vigor no próximo dia 11, já nasce desatualizada e com problemas identificados desde sua proposição em 2004, mas que, infelizmente, não foram corrigidos”, avalia.
O primeiro ponto de crítica é estratégico para o amadurecimento do mercado: a ausência de um tratamento diferenciado para grandes riscos. “Nos termos da lei, um consumidor pessoa física que contrata um seguro para seu veículo é tratado da mesma forma que uma grande multinacional que contrata seguros para suas atividades”. Para a especialista, essa equiparação “coloca em risco a evolução do mercado e o desenvolvimento de novos produtos mais adequados aos grandes projetos que um país em desenvolvimento precisa implementar”.
Ela observa que o Brasil estaria “na contramão do resto do mundo”, onde há maior liberdade negocial para seguros corporativos complexos, com separação legislativa entre riscos massificados e grandes riscos, citando como referência práticas adotadas em países europeus e em vizinhos como Argentina, Chile e Peru.
Impacto na precificação
Outro eixo central da crítica envolve o que ela define como excesso de intervenção. “O consumidor de seguros já conta com a ampla proteção do Código de Defesa do Consumidor (CDC), da Susep e dos tribunais brasileiros”, pondera. Mesmo assim, afirma, a lei “traz regras ainda mais protetivas, gerando um desequilíbrio na relação contratual que acaba refletindo na precificação do seguro”.
Na prática, o temor de Débora é que o objetivo de democratização se inverta: “Ao invés de se tornar mais acessível e democrático, o seguro pode se tornar mais caro e elitizado”.
Burocracia e retrocesso regulatório
A advogada também vê risco de freio na agenda de inovação regulatória construída nos últimos anos. “As novas regras têm um caráter bastante intervencionista na operação das seguradoras, ditando prazos e entrando em aspectos contratuais de prestadores de serviços, reguladores, resseguradoras e corretores”.
Um dos exemplos mais sensíveis, segundo ela, é o retorno da exigência de registro de produtos na Susep. “As seguradoras voltam a ter que registrar seus produtos na Susep, um total retrocesso em relação às medidas regulatórias ocorridas entre 2021 e 2022, que desburocratizaram o setor”. Na leitura da especialista, esse movimento pode exigir “readequação, em curto espaço de tempo, de todos os processos internos”, elevando custos e, por consequência, o valor dos prêmios.
Risco de uma nova onda de litígios
Embora a “segurança jurídica” seja um dos argumentos associados ao novo marco, Débora prevê turbulência no curto prazo. “Nos primeiros anos a tendência será de aumento da judicialização, justamente porque a lei impõe prazos e sanções muitas vezes incompatíveis com a realidade do mercado”, compartilha.
Ela exemplifica com o prazo padrão de 30 dias para regulação de sinistro e manifestação sobre cobertura. “Se esse prazo for ultrapassado, a seguradora decairá do direito de negar o pagamento da indenização; ou seja, mesmo que a indenização não seja devida, ela terá que pagar”. Para a advogada, esse tipo de mecanismo pode tanto incentivar pagamentos indevidos, afetando o equilíbrio dos fundos mutualistas, quanto levar a negativas precipitadas para evitar sanções, “o que potencializará conflitos e judicializações”.
A especialista também chama atenção para o debate sobre eventual aplicação da lei a contratos anteriores à sua vigência, hipótese que, segundo ela, colide com princípios constitucionais como o ato jurídico perfeito e a própria segurança jurídica.
Impactos por segmento e o papel da regulação infralegal
Em termos de efeito setorial, Débora considera que a lei “afeta menos os ramos de vida e previdência”, mas ressalta que, no conjunto, “todos os setores serão atingidos”. O agravante, aponta, seria a falta de regulamentação detalhada e a possibilidade de a Susep entender o texto como autoaplicável, deixando o mercado exposto a lacunas e risco de desconformidade.
A aposta de equilíbrio, para ela, dependeria de normas infralegais capazes de corrigir distorções. Mas o cenário, por ora, não inspira confiança. Ela menciona manifestações recentes da autarquia, citando o debate em torno do artigo 76 e a interpretação de que não deveriam ser permitidas cláusulas de cooperação e controle em contratos de resseguro. Para a advogada, trata-se de um entendimento que contraria práticas consolidadas do mercado e afronta a liberdade contratual, podendo inclusive colidir com a Lei da Liberdade Econômica e princípios do Código Civil.
Marco decisivo e controverso
Com a entrada em vigor do novo Marco Legal dos Seguros, o setor abre uma fase em que a disputa de narrativas também deve ganhar espaço: de um lado, a leitura de modernização e reforço de transparência; de outro, o alerta sobre retrocessos regulatórios e impactos econômicos no acesso ao seguro.
A avaliação de Débora Schalch sintetiza a preocupação de parte do mercado jurídico e técnico: “O retrocesso é inegável em vários aspectos e decorre de um viés ideológico que não deveria ser a tônica para regular um mercado tão promissor e importante para o Brasil”, conclui em entrevista ao Universo do Seguro.
