Especialistas do Fórum de Seguros França-Brasil listam ações necessárias
Diante do agravamento dos desastres naturais, o papel do setor de seguros na transição climática torna-se não só cada vez mais central, como mais desafiante ao exigir a revisão de modelos de risco e a busca por soluções sustentáveis. No Brasil, a recorrência de enchentes, secas e o avanço do desmatamento elevam a pressão sobre o setor, com impactos diretos sobre prêmios e coberturas. Na França, eventos extremos como ondas de calor e inundações também impulsionam adaptações nas práticas do mercado. Fato: a conta é cada vez mais salgada para seguradoras e resseguradoras dos dois países.
Em síntese, os especialistas que participaram do primeiro painel do Fórum de Seguros França-Brasil, intitulado “Seguro e Clima em um Mundo em Transformação”, ressaltaram a urgência de instrumentos inovadores, capazes de sustentar comunidades e investimentos em um mundo em transformação, além da própria sobrevivência dos grupos.
O debate teve a presença de Pedro Farme d’Amoed, CEO da Guy Carpenter; Michèle Lacroix, head of sustainability da SCOR; Rebecca Chapman, head of Climate and Environment, Principles for Responsible Investments (PRI); Timothy Bishop, senior advisor da OCDE; moderados por Christian Pierotti, chairman Climate Risks WP da GFIA (Global Federation of Insurance Association).
Perdas seguradas
Em sua fala, Michele Lacroix (SCOR) alertou para o impacto crescente das mudanças climáticas e de fatores estruturais no custo das perdas seguradas globais. Segundo ela, as perdas seguradas globais, que há três décadas giravam em torno de US$ 25 bilhões por ano, hoje se aproximam — e frequentemente ultrapassam — a marca dos 100 bilhões. “Os especialistas já consideram que esse valor se tornará o novo normal”, alertou Lacroix.
Embora as mudanças climáticas tenham um peso inegável nesse cenário, Lacroix ressalta que elas não são o único fator. A inflação patrimonial, o aumento do valor dos bens segurados e a crescente concentração populacional em áreas expostas a riscos — como zonas costeiras — também são determinantes. “É a combinação desses três fatores que levou a esse extraordinário aumento no total de perdas seguradas”, explicou.
Ela acrescentou que, nos últimos 30 anos, o crescimento médio das perdas seguradas foi de 6% ao ano — descontando a inflação, cerca de 3%. As projeções indicam que esse ritmo deve se manter ou até acelerar, podendo dobrar o volume de perdas já na próxima década.
Outro ponto de atenção, segundo Lacroix, é o aumento dos chamados riscos secundários — eventos como incêndios florestais e tempestades convectivas, menos intensos individualmente, mas mais frequentes e cada vez mais relevantes nos cálculos de risco. “Em 2023, 90% das perdas seguradas vieram desses perigos, que não estavam no centro do modelo tradicional de resseguros”, observou.
A executiva defende que a resposta a esse novo contexto exige uma abordagem integrada, baseada em três pilares: prevenção, adaptação e mitigação.
“É através da prevenção que conseguiremos reduzir os sinistros e proteger os mais vulneráveis”, ponderou. Ela aponta a urgência de revisar normas de construção e incorporar o risco climático nas decisões urbanísticas. Em relação à adaptação, Lacroix enfatiza o papel das políticas públicas na capacitação das populações para reagirem a desastres naturais.
Por fim, ela reforça a importância da mitigação: “Devemos continuar lutando contra as alterações climáticas, reduzindo as emissões de carbono nas nossas carteiras e influenciando a economia real nesse sentido”.
Para ela, o desafio não é apenas segurar riscos crescentes — é transformá-los em oportunidades de construção de resiliência.
Em complemento, o moderador Christian Pierotti destacou a urgência de estratégias de adaptação, mitigação e cooperação internacional.
Lacunas de proteção
Pedro Farme d’Amoed (Guy Carpenter) chamou a atenção para a urgência de reduzir a lacuna de proteção, principalmente no mercado brasileiro. O executivo lembrou que há uma baixa percepção de risco no país e defende o avanço da modelagem preditiva como chave para ampliar a cobertura contra desastres naturais.
A seu ver, o Brasil ainda se enxerga, majoritariamente, como um país de baixa exposição a catástrofes naturais. Essa visão é não apenas equivocada, mas perigosa. “Há um risco de baixa percepção de risco pela população, e o reflexo disso é um abismo entre perdas econômicas e cobertura securitária”, disse o executivo, citando como exemplo a tragédia climática no Rio Grande do Sul em 2023.
“O evento teve uma lacuna de proteção de 95%. Para cada 100 reais perdidos, apenas cinco foram cobertos pela indústria de seguros. O restante coube à sociedade e ao governo”, afirmou Farme d’Amoed. Em um cenário global onde a média da proteção gira em torno de 60%, o dado brasileiro expõe uma fragilidade crítica. No estado afetado, menos de 15% das residências estavam seguradas.
O executivo vê o episódio como um marco — um alerta que não pode ser ignorado. “Não foi um evento isolado. As mudanças climáticas estão acelerando a frequência e a intensidade dessas ocorrências. E os dados confirmam isso.” Segundo Farme d’Amoed, o Atlas de Desastres Naturais do governo federal registra perdas anuais de R$ 40 bilhões a R$ 50 bilhões.
Diante desse panorama, ele relata uma transformação gradual na postura do setor. “Num primeiro momento, as companhias correram para mapear suas exposições. Agora, com maior maturidade, passam a atuar na oferta de proteção.” Um passo importante foi dado em agosto de 2024, com o lançamento do primeiro modelo preditivo de inundações no Brasil. “Hoje, mais de 20 empresas e Confederações já utilizam esse modelo para precificar riscos e ampliar cobertura”, destacou.
Farme d’Amoed vê nessa evolução um caminho promissor para reduzir a lacuna de proteção e ampliar a resiliência social. No entanto, enfatiza que o setor privado não pode agir sozinho. “É essencial avançarmos com parcerias público-privadas. O governo precisa assumir um papel de patrocinador da diversificação de riscos”.
Enfim, diante da crescente ameaça climática, não basta reagir. É preciso antecipar, modelar e proteger. E, sobretudo, reconhecer que o risco é real — e crescente.
Investimento responsável
Rebecca Chapman (PRI), examinou o avanço do risco climático e o papel dos investidores institucionais. A seu ver, é fundamental a adoção emergencial de políticas públicas e ações coordenadas para enfrentar os riscos sistêmicos das mudanças climáticas.
Rebecca Chapman, disse que hoje há mais de 5.000 signatários em todo o mundo dos Princípios para o Investimento Responsável (PRI)— representando mais da metade do capital institucional global. Segundo ela, o PRI, apoiado pela ONU, está mobilizando esforços para acelerar ações concretas diante da intensificação da crise climática.
Ela reconheceu que o aquecimento global está afetando diretamente os negócios: “Estamos vivendo a realidade de um mundo 1,5 grau mais quente, com ondas de calor extremas, secas, inundações e incêndios. Cada fração de grau importa — e as perdas já são visíveis nos preços de ativos e na estabilidade de mercados”.
A executiva alertou que a superação do limite de 1,5°C implica riscos ainda mais severos, incluindo a ativação de pontos de inflexão climáticos — como o derretimento irreversível das calotas polares — que agravariam o cenário global. “Não é possível diversificar esse tipo de risco. Ele é sistêmico. Afeta preços de alimentos, disponibilidade de água e até mesmo a segurabilidade de ativos em regiões inteiras”.
Saídas? Reconhecimento do risco climático como material e urgente, especialmente à luz do atraso na implementação de políticas de mitigação; pressão por ações governamentais mais ambiciosas, especialmente no período que antecede a COP 30, que ocorrerá em Belém, em 2025. “É essencial termos políticas públicas críveis, alinhadas a planos de investimento consistentes com a transição energética”, reforçou.
Ainda: engajamento político estruturado como ferramenta estratégica para investidores (“reformar políticas públicas é chave para acelerar ações sustentáveis nos portfólios”). Além disso, adoção de estratégias regionais e adaptação às especificidades locais, com atenção especial ao Brasil, que conta hoje com mais de 130 signatários do PRI.
Ela concluiu sua fala lembrando que existem oportunidades em um quadro severo de extremos climáticos. “Investir em adaptação e em soluções de transição nos setores de alta emissão será cada vez mais essencial. A transição tardia exige ação, mas também abre espaço para inovação e liderança”.
Ações da OCDE
Timothy Bishop (OCDE) exortou a cooperação internacional e parcerias público-privadas como solução para construir resiliência financeira frente aos desastres naturais. Ele lembra que crise climática amplia lacunas de proteção e desafia acesso a seguros.
O executivo vê com preocupação a escalada das perdas causadas por desastres naturais e vê risco de acessibilidade e a disponibilidade de seguros, inclusive em países desenvolvidos. “Na Austrália, por exemplo, 15% das famílias já enfrentam dificuldades para pagar o seguro residencial. Esse número cresceu em apenas um ano”, destacou, para quem a redução de oferta é uma tendência global.
Ele explica que as mudanças climáticas aumentaram a frequência e a severidade dos eventos extremos, pressionando o mercado segurador e deixando milhões sem proteção. “Estamos diante de lacunas de proteção cada vez maiores. E, para lidar com questões tão complexas, precisamos de soluções internacionais articuladas”, afirmou.
Sobre o papel da OCDE, ele disse que a organização atua como plataforma de diálogo entre diferentes países e setores. Reúne reguladores de seguros, autoridades ambientais, especialistas em desenvolvimento e representantes da indústria para construir soluções conjuntas. “Somos um fórum onde governos conseguem conversar entre áreas que muitas vezes não dialogam nem dentro de suas próprias estruturas”, explicou Bishop. Essa capacidade de articulação torna a OCDE uma peça-chave para destravar políticas integradas de adaptação e financiamento de riscos.
Um dos pontos centrais trazidos por Bishop é a necessidade de avançar no uso de fundos de perdas e danos como instrumentos para fortalecer mecanismos de seguro, especialmente nos países mais vulneráveis. “Na próxima COP, este será um tema crucial. Precisamos garantir que esses fundos não sejam apenas compensatórios, mas catalisadores de resiliência”.
Bishop destacou ainda o papel essencial das PPPs não apenas para ampliar o acesso aos seguros, mas para impulsionar ações estruturais de redução de riscos. Ele citou o exemplo da Espanha, onde o sistema público-privado de seguros também contribui com informações para mapear áreas de risco e orientar políticas de mitigação. Casos como o Flood Re, no Reino Unido, e modelos suíços também foram mencionados como exemplos de boas práticas.
“Essas soluções podem ser politicamente difíceis de implantar, mas uma vez estabelecidas, têm um papel fundamental: ampliam a cobertura de seguros e fortalecem a capacidade de enfrentamento das sociedades frente aos desastres”.
Ele finalizou sua fala afirmando que a mudança climática exige uma nova abordagem de gestão de riscos — mais preventiva, mais colaborativa e com foco em soluções estruturantes. “Precisamos não só de mais seguro, mas de mais resiliência. E isso só se faz com coordenação entre governos, mercado e sociedade”, concluiu Bishop.
O Fórum França-Brasil de Seguros, promovido pela CNseg em parceria com a France Assureurs, marca um novo capítulo da internacionalização do mercado segurador brasileiro. A proposta é fortalecer a cooperação bilateral, fomentar soluções inovadoras e integrar o seguro aos grandes projetos de desenvolvimento nacional, incluindo os voltados à resiliência climática e à inclusão econômica.