Confira artigo de Roberto Gonzalez, consultor de governança corporativa e ESG e conselheiro independente de empresas
Neste mês de janeiro, completaram-se dois anos do escândalo bilionário da varejista Americanas. Um rombo superior a R$ 40 bilhões que só atingiu esse tamanho todo por conta de maquiagem na contabilidade da companhia durante vários anos. Considerando o que foi noticiado até o momento, executivos do alto escalão e empresas de auditoria externa envolvidas na produção do balanço parecem que sabiam que a empresa era deficitária, mas mantiveram tudo escondido do mercado. O resultado foi que muita gente perdeu dinheiro investindo com base em relatórios falsos e até grandes instituições financeiras tiveram seus pilares abalados com o fato.
O curioso é que a Americanas era integrante do “Novo Mercado” da B3. Só integra este grupo empresas cuja governança corporativa é considerada exemplar. Parece piada, pois no caso das Americanas a governança era justamente o que mais faltava. Até porque aqueles que deveriam trabalhar por ela foram justamente os que a burlaram. Caso típico de falta de ética e de um modelo de gestão desprovido de uma política séria de compliance.
Abri este texto falando do caso Americanas por ele ser emblemático quando pensamos nos prejuízos que a falta de ética e de compliance podem causar na empresa, no mercado e na sociedade. Pequenos investidores ainda lutam para reaver o dinheiro perdido – ou seria mais correto dizer subtraído por espertalhões? Isso quem tem de dizer é a Justiça. O fato é que existem outros casos semelhantes, porém, convém ressaltar que o prejuízo causado pela maquiagem contábil não pode ser a única régua a medir o problema. Há empresas que utilizam estratégias nada éticas para garantir lucratividade.
Isso acontece em todos os ramos de negócios e é um problema sério no segmento da saúde. Não por acaso tem sido tema principal de muitas reuniões com especialistas do setor, pois as consequências podem ser catastróficas no longo prazo. Isso mostra que existe consciência e interesse em implementar mudanças. Como exemplo, a ANAHP (Associação Nacional de Hospitais Privados) tem promovido boas práticas de governança e conformidade nas instituições de saúde privadas do Brasil.
A entidade desenvolve um trabalho de compliance em que fornece orientações e ferramentas para que os hospitais privados desenvolvam e implementem políticas internacionais de conformidade, homologadas às leis e normas do setor de saúde, como os critérios da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), normas de segurança do paciente e legislações trabalhistas. A ideia é garantir que seus associados sigam não apenas as normativas e regulamentações legais, mas também os princípios éticos e de responsabilidade social que regem o setor. Dessa forma, há instituições de saúde que já trabalham nisso, mas é preciso que as boas iniciativas se espalhem com mais rapidez. Não podemos aceitar como normais tragédias que eventualmente ocorrem como consequência da falta de ética e compliance.
Recentemente, nos Estados Unidos, um rapaz matou o executivo de uma grande empresa da área de seguro saúde. Segundo a imprensa, ele estava revoltado com a forma que a seguradora tratou seu caso, negando determinados procedimentos que seriam importantes para a solução da enfermidade. Pelo que foi noticiado, a prática de negar exames era comum, uma forma de reduzir custos e aumentar a rentabilidade do negócio em favor de acionistas.
No Brasil não é tão diferente. Negar procedimentos para reduzir custos é uma tática de diversos convênios médicos. E este não é o único desvio ético cometido, há outros como, por exemplo, o conflito de interesses. Esse conflito se dá quando existem relações entre profissionais de saúde com a indústria farmacêutica ou de equipamentos médicos. É quando se receita um medicamento que nem sempre é o mais indicado com a finalidade de receber algum benefício. É comum também médicos indicarem farmácias de manipulação, em alguns casos pode sim existir um esquema comercial.
Outro ponto importante é sobre a proteção de dados dos pacientes. Para citar um exemplo, em 2022 uma famosa atriz brasileira sofreu com a falta de ética de uma enfermeira do hospital onde ela, a atriz, se encontrava. A atriz em questão havia sido violentada e meses depois descobriu que estava grávida. Por questões técnicas resolveu manter a gestação, porém, com apoio de advogados, decidiu que entregaria o recém-nascido para adoção logo após o parto. A legislação brasileira prevê essa possibilidade. Ela estava apenas usufruindo de um direito dela.
No entanto, a enfermeira vendeu a informação para um jornalista. O caso se tornou público e ela foi vítima de haters, que faziam comentários maldosos e totalmente desconectados da realidade, baseados apenas em uma falsa moralidade. A privacidade e confidencialidade foram quebrados e, claro, o hospital foi processado e a enfermeira, além do emprego, perdeu o registro profissional. Saiu caro.
Completam a lista das ações antiéticas a discriminação, ou seja, tratar de maneira diferente os pacientes por motivos de raça, gênero, idade ou condição socioeconômica e, por fim, a irresponsabilidade médica, que podemos definir como erros médicos causados por imperícia ou negligência. São problemas graves e a única forma de mitigá-los é por meio da implantação de uma política de compliance que nada mais é do que a adoção de procedimentos internos com o objetivo de fazer com que a organização esteja em conformidade com leis, normas e regulamentos vigentes, inclusive regulamentos internos, sobretudo o código de ética e conduta.
Essa política deve ser implantada por meio de um programa cuidadosamente estruturado e baseado em leis vigentes como as citadas abaixo:
- Lei de Proteção ao Paciente: Direitos do paciente (Lei nº 8.078/1990).
- Lei de Ética Médica: Regulamentação da profissão médica (Lei nº 3.268/1957).
- Lei de Anticorrupção: Prevenção de corrupção em contratos públicos (Lei nº 12.846/2013).
- Regulamentação de produtos médicos: Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
- Sigilo profissional: Proteção de informações confidenciais.
Obviamente, a implantação desta política de compliance tem de considerar que os desvios existentes ocorrem por questões culturais enraizadas no ambiente corporativo. Logo, sua execução será difícil ou inconsistente se ficar nas mãos exclusivamente dos executivos e profissionais que são o alvo das mudanças. O ideal é formar um comitê que tenha pelo menos um profissional de fora, com autonomia e autoridade suficientes para apontar e apresentar as soluções para as falhas não só dos funcionários da base, mas também do alto escalão.
Vale lembrar que tudo isso exige educação e treinamento de todo o corpo de profissionais para que eles sejam capazes de trabalhar dentro dos protocolos estabelecidos. Voltando a citar o caso da enfermeira, a responsabilidade dela não se limitava a fazer curativos, aplicar injeções, entre outros procedimentos técnicos. Ela estava conectada a um ambiente corporativo e não podia tomar a liberdade de divulgar informações que a paciente e o hospital não autorizassem.
Ela o fez por ignorância e ganância, mas o hospital falhou em sua política de compliance. Como não se trata de um caso isolado – tudo o que citei nas linhas acima acontece em estabelecimentos de saúde de todo o país, com maior, menor ou nenhuma repercussão –, concluo que já passou da hora de deixarmos de discutir o tema e passarmos para a fase seguinte, que é a implantação de um modelo de compliance com vistas a manter o bom funcionamento e a saúde do negócio sem a necessidade do uso de estratégias desprovidas de ética.