Confira artigo de Claudia Bouman, especialista em reputação de marca e sócia da Percepta Marketing e Comportamento
Talvez poucos se lembrem do romance de Milan Kundera, sucesso no fim século passado e inspiração para o título deste artigo. No livro, quatro personagens, cada um a seu modo, vivenciam escolhas e aprecia a beleza de situações que acabam se mostrando opressoras. “Apenas, talvez, vivacidade e mobilidade da inteligência escapem da condenação”, comentou o também escritor e jornalista Italo Calvino.
A reputação bem cabe no campo de questões aparentemente leves, sutis e até positivas que podem, do nada, cair em um abismo opressor do qual é difícil sair. Principalmente quando construída em pilares menos sólidos, quando, por exemplo, a atenção à imagem é prevalente sobre outros esteios.
Tudo isso vem à mente ao contato com uma campanha comunicacional e midiática promovida pela Enel após o apagão que assolou o estado e, principalmente, a região metropolitana de São Paulo após uma tempestade, evento com tendência se ser mais corriqueiro na medida do acirramento dos desequilíbrios climáticos.
Será que a companhia não sabe disso?
Sim, não é a primeira vez que a região sofre com tempestades e apagões – há exatos dez anos, ainda como AES Eletropaulo, ocorreu cenário parecido.
E aí, em meio ao caos – cinco dias depois da tempestade, ainda eram mais de 40 mil domicílios sem energia na região – o presidente da empresa vem a público em entrevista na TV falar sobre o esforço da empresa em triplicar suas equipes para atendimento emergencial e a responsabilidade da prefeitura sobre a poda de árvores para evitar a queda.
Na mídia de massa, anúncios abordam como a empresa está trabalhando intensamente frente à tempestade fora do comum, usando todos os recursos disponíveis, tendo reestabelecido a energia em hospitais em 24 horas e recuperando o fornecimento para 1 milhão de clientes.
Entretanto, quem está sem energia há mais de cinco dias questiona: e daí? Estão mesmo sendo usados todos os recursos disponíveis? Seria possível, digamos, contratar um gerador e colocar aqui no meu condomínio enquanto outros problemas técnicos são resolvidos? Teria sido possível melhor manutenção preventiva, ou preditiva, por parte da empresa?
Aqui entra a insustentável leveza da reputação. Enquanto tudo vai bem, nada a questionar. Sem ventos ou tempestades, as árvores não caem e não importa a redução de equipes próprias e a potencial falta de comprometimento provocada pela terceirização – só para constar, em 2014 a AES percebeu o erro de mandar embora funcionários gabaritados com conhecimento técnico e memória do sistema e aumentou seu quadro de 6 mil para 8,8 mil funcionários; a Enel apostou de novo na terceirização, com o número de trabalhadores próprios caindo de 7 mil para 3,9 mil e prestadores de serviços com salários achatados.
Pois, como se sabe, a reputação, a exemplo do diabo (ou de Deus), mora nos detalhes. De que serve uma campanha de mídia para quem está sem energia sequer para receber a mensagem? Quem recebe a mensagem engole o fato de a empresa estar fazendo tudo a seu alcance, frente ao noticiário dando conta da realidade?
Quantos funcionários extras, ou geradores, o valor empenhado em mídia teria pago? Em que momento a área de gestão de crises da companhia enlaçou questões técnicas às reputacionais? Trabalhadores próprios e terceirizados estão satisfeitos o suficiente para enfrentar dramas deste tipo? Recursos e treinamento da área de atendimento dão conta de clientes raivosos (com toda razão)?
E assim, como uma pluma no ar repentinamente afogada pela tempestade, a reputação pode ir pelo ralo. Claro que crises existem. Mas elas podem (e devem) ser imaginadas, previstas e ganhar planos consistentes. Inclusive sobre impactos reputacionais. Ninguém dimensiona uma estrada para o domingo à tarde de um feriadão, comparou o presidente da companhia. Sim, mas planos de contingência preparam as pistas para o momento. Com a reputação deve ocorrer o mesmo.