Evento organizado pela Howden, em parceira com o Demarest, reuniu empresas de diferentes segmentos para discutir os impactos jurídicos, técnicos e econômicos da Lei 14.599/23; Pontos críticos envolvem fatores financeiros e qualidade das entregas
Desde que entrou em vigor em junho, a Lei 14.599/23, que regulamenta os transportes rodoviários de cargas, tem provocado incertezas e insegurança ao setor ao englobar questões como o custo das apólices e o seu impacto no frete; nova previsão sobre seguros obrigatórios e facultativos; e produtos ainda não regulamentados pela Superintendência de Seguros Privados (Susep).
Diante desse cenário, a Howden, corretora internacional de seguros e resseguros independente, em parceira com o Demarest Advogados, promoveu um debate com representantes do mercado de seguros, transportadores, embarcadores e setor jurídico para analisar os principais impactos da nova legislação em todo o setor.
Para Marcio Dias, diretor de Marine, Cargo e Logística da Howden Brasil, é fundamental promover um debate esclarecedor com a presença de todos os atores envolvidos para viabilizar a aplicação da nova Lei. “Como representantes do setor securitário, precisamos agir como facilitadores e levantar pontos que precisam de mais clareza, especialmente nesse momento, em que o mercado está em fase de renovação das apólices e ainda não temos um posicionamento definido pelos órgãos reguladores”, explicou Dias. “É importante chegar a um consenso entre o mercado e as entidades reguladoras para atender as exigências da lei”, completou.
Para discutir os diversos aspectos da lei e os rumos do setor, o debate contou com a presença de Márcia Cicarelli, sócia de Seguros e Resseguros do Demarest Advogados; Marcio Dias, diretor de Marine, Cargo e Logística da Howden Brasil; Paulo Alves, diretor de Seguros de Transportes e RCO da EZZE Seguros; Ivor Moreno, head de Transportes da Akad Seguros, Ida Patrícia de Sá, head global de Seguros da Natura&Co. e Roberta Motta, gerente jurídica da área de Contratos, Seguros e Societário da FedEx Brasil.
Os pontos críticos antes citados são decorrentes da mudança na forma de contratação e negociação das apólices de responsabilidade civil, a cargo do transportadores, e do seguro contratado pelo dono da carga, chamado “embarcador” e da ausência de regulamentação pela Susep, já que a lei ainda é muito recente.
Principais pontos de alteração
O evento teve início com uma palestra de Márcia Cicarelli, sócia do Demarest, apresentando o contexto de aprovação da Lei 14.599/2023 desde a Medida Provisória 1.153/2022, seguido de uma explanação sobre os principais pontos do artigo 13 da Lei 11.442/2007, alterados pela nova legislação, a saber: seguros obrigatórios, possibilidade ou não de estipulação, DDR e planos de gerenciamento de risco, TACs e renovações e averbações em apólices vigentes.
“Desde a Lei 11.442/2007, há um debate sobre a existência de dois interesses seguráveis: do embarcador, na qualidade de proprietário da carga, e do transportador, na qualidade de responsável pelo transporte, sendo que ambos os seguros eram obrigatórios. A nova lei teve por objetivo propor um novo rearranjo na contratação desses seguros. Todavia, no tempo de tramitação da Medida Provisória, com as muitas emendas e alterações apresentadas, a redação final da lei deixa dúvidas sobre diversos pontos”, disse Márcia Cicarelli.
Seguros obrigatórios em apólice única
A contratação dos seguros de responsabilidade civil do transportador rodoviário de carga (RCTR-C), o desaparecimento de carga (RC-DC) e a responsabilidade civil de veículo utilizado em transporte de cargas por danos a terceiros (RCV) passou a ser obrigatória para transportadores, prestadores do serviço de transporte rodoviário de cargas. Já o Seguro de Transporte Nacional, antes obrigatório, passou a ser facultativo. Os seguros obrigatórios RCTR-C e RC-DC devem estar vinculados ao Plano de Gerenciamento de Riscos (PGR), estabelecido de comum acordo entre o transportador e a sua seguradora, em apólice única, contemplando o seguro de todos os tipos de carga, para cada ramo de seguro, por segurado.
Quanto à mudança do seguro de Transporte Nacional para facultativo, Márcia Cicarelli ponderou que “para além do debate sobre a nova lei dispor sobre o Seguro de Transporte Nacional como facultativo, a despeito do Decreto Lei 73/66 prever tal seguro como obrigatório, o fato é que o Seguro de Transportes Nacional permanece como um produto fundamental, seja por ser multimodal e possuir coberturas mais amplas, seja porque é uma proteção da qual muitos embarcadores não querem abrir mão”.
Roberta Motta, gerente jurídica de contratos e seguros da FedEx Brasil, destacou que “a vantagem de um PGR único é operacional, porque ele abrange todos os embarques no mesmo veículo. No entanto, ele precisa ser robusto e abrangente para contemplar coberturas de cargas de maior limite de indenização, por exemplo”.
Na avaliação de Ida Patrícia de Sá, head de Seguros da Natura & Co., o PGR vai além de “evitar” o dano material; envolve também, de forma muito relevante, a reputação da empresa. “Os embarcadores desejam que os seus produtos cheguem no destino final e temem que seus produtos circulem no mercado paralelo, e o modelo de estipulação serve como um instrumento para aumentar as chances de uma operação segura e saudável”, sinalizou.
Vale ressaltar que a nova norma prevê que os seguros de responsabilidade civil do transportador são de contratação obrigatória, e não exclusiva dos transportadores. Portanto, na avaliação de Marcia Cicarelli, “a possibilidade de estipulação do seguro RCTR-C pelo embarcador foi mantida na nova norma, mas deve ser contratada por apólice vinculada ao RNTR-C”.
Plano de Gerenciamento de Riscos (PGR) e cartas de Dispensa do Direito de Regresso (DDR)
A nova lei dispõe que o contratante do serviço de transporte poderá exigir medidas adicionais de segurança àquelas previstas no Plano de Gerenciamento de Risco, vinculado aos seguros de Responsabilidade Civil do transportador, mas os custos associados à sua implementação deverão ser suportados pelo próprio contratante, e não pelo transportador.
Na visão de parte dos analistas, a tendência é que os embarcadores não renunciem à contratação do Seguro Transporte Nacional, seja em razão de sua abrangência de cobertura (multimodal e mais amplo que o RC do transportador), seja em função das políticas internas e riscos reputacionais das empresas.
Alguns embarcadores podem optar pelo PGR próprio para embarque de cargas específicas. Caso essa prática se consolide, tanto transportadores como embarcadores terão apólices sobre o mesmo bem, gerando dúvidas sobre como ficam as cartas Dispensa do Direito de Regresso (DDR), vinculadas ao Plano de Gerenciamento de Riscos do embarcador.
O cumprimento do PGR era condição para que a seguradora do embarcador não exercesse o direito de regresso contra o transportador em caso de desaparecimento da carga. Assim, a DDR era um benefício aos transportadores que cumpriam o PGR, justamente porque o escopo do PGR é reduzir o número de sinistros e mitigar os prejuízos.
De acordo com os analistas, apesar da DDR ser um direito da seguradora e não ter sido vetada pela lei, é possível a sua permanência, desde que não isente o transportador da contratação dos seguros obrigatórios. No entanto, a sua aplicação é questionável, visto que não há desconto na taxa quando apresentada pela seguradora do transportador.
Segundo Ivor Moreno, head de Transportes da Akad Seguros, “o mercado ainda está entendendo a dinâmica para se adequar, inclusive com relação à precificação”.
Taxas e valores das apólices devem aumentar
O valor do frete e o repasse do prêmio do seguro são outros pontos que dependem da relação comercial entre o Embarcador e o Transportador. O chamado “ad valorem” tende a onerar o frete, impactando os embarcadores que não tinham esse aumento de despesa projetado em seus respectivos orçamentos, causando um efeito em cadeia, inclusive, com reflexos inflacionários.
Na avaliação de Marcio Dias, existe a preocupação por parte do embarcador com relação ao aumento do “ad valorem”, assim como há preocupação dos transportadores com relação ao aumento do custo, como o RC-V, por exemplo, e com o repasse dos valores aos embarcadores. Isso porque o embarcador poderá solicitar uma cópia das apólices ou solicitar declaração mencionado a taxa paga pelo transportador”.
Transportador Autônomo de Cargas (TAC)
Embarcadores, empresas transportadoras e cooperativas de transporte ficam impedidos de descontar o valor do frete do Transportador Autônomo de Cargas (TAC), assim como valores referentes à taxa administrativa e aos seguros de qualquer natureza, sob pena de indenização ao TAC no valor referente a duas vezes o valor do frete contratado.
O seguro de Responsabilidade Civil de Veículo (RC-V), para cobertura de danos corporais e materiais causados a terceiros pelo veículo utilizado no transporte rodoviário de cargas, deverá ser firmado pelo contratante do serviço, por viagem, em nome do caminhoneiro subcontratado. Ainda não há comercialização desse seguro para pessoa física e as seguradoras estão aguardando uma posição da Susep sobre em qual “carteira” ficará o seguro “automóvel” ou “transporte”, assim como a comercialização desses seguros.
Equilíbrio: impactos financeiros x qualidade
No debate, ficou evidente que o ponto crítico comum é encontrar o equilíbrio entre os impactos financeiros e a qualidade das entregas. Há preocupação com o aumento nos valores do frete e do custo das apólices, assim como a qualidade das entregas, sem comprometer a reputação dos detentores dos produtos embarcados e das transportadoras.
Uma possível tendência é que as transportadoras optem pela segmentação do mercado se especializando no transporte de cargas específicas, de acordo com a abrangência dos PGRs. Outra possibilidade é a abertura de novas transportadoras próprias pelos embarcadores, prática que já acontece em grandes empresas e que pode se expandir.
“O setor jurídico e de seguros têm um papel fundamental nesse cenário instável e ainda sem regulamentação. Os impactos financeiros envolvem taxas, multas e sanções, em especial para o transporte de cargas específicas, como alimentos, eletrônicos e outros produtos sensíveis. Cabe a nós, especialistas, dar todo o respaldo necessário para que as apólices sejam robustas e protejam a reputação das duas partes, com preços que não comprometam as operações”, completou Marcio Dias.
Ele ressaltou, ainda, que o mercado de seguros se adaptará às necessidades dos embarcadores e transportadores. No entanto, é importante que haja celeridade nesse tema pelas seguradoras e pelos órgãos fiscalizadores.