Reflexões a partir da Madeira Maritime Week 2025, por Simone Ramos
A crescente complexidade regulatória no setor marítimo internacional tem imposto novos desafios à competitividade portuária e operacional, afetando desde a logística até os mecanismos de seguros e responsabilidade civil. A partir do painel “Bureaucracy versus Competitiveness”, realizado na Madeira Maritime Week 2025 entre os dias 19 e 21 de Maio 2025, trago uma breve análise dos principais riscos sistêmicos decorrentes da fragmentação legal e da burocracia no contexto das obrigatoriedades regulatórias.
O comércio marítimo é responsável por aproximadamente 90% do transporte global de mercadorias. No entanto, o que deveria ser um sistema integrado por excelência, encontra-se submetido a um mosaico regulatório que varia significativamente entre regiões, países e blocos econômicos. A discrepância de exigências legais, a sobreposição de normas ambientais, trabalhistas, fiscais e securitárias tornam a navegação comercial um terreno de alto risco operacional e jurídico. Este cenário, amplamente discutido durante o painel “Bureaucracy versus Competitiveness” da Madeira Maritime Week 2025, revela um setor pressionado pela necessidade urgente de modernização regulatória, digitalização e harmonização legal.
A Burocracia como Risco Estrutural no Transporte Marítimo
A burocracia, tradicionalmente entendida como instrumento de controle e segurança institucional, tem se transformado em obstáculo sistêmico no setor. Procedimentos redundantes, exigências documentais e ausência de sistemas integrados entre bandeiras e autoridades portuárias dificultam o planejamento logístico e aumentam a exposição a falhas de conformidade. Esse risco estrutural pode acarretar consequências diretas, tais como:
- Detenção de navios por não cumprimento de normas locais;
- Multas e penalidades contratuais impostas por afretadores e autoridades;
- Encarecimento das operações por atrasos e necessidade de retrabalho documental;
- Prejuízos securitários, com negativa de cobertura por falhas de cumprimento regulatório.
Tais situações agravam-se especialmente quando navios operam entre diferentes jurisdições sem sistemas harmonizados. Em portos norte-americanos, por exemplo, a margem de tolerância à não conformidade é mínima, exigindo não apenas o cumprimento, mas a capacidade de demonstrar de forma proativa e transparente que as exigências foram seguidas.
O Papel das Legislações Locais e Seus Impactos nos Seguros
Um dos temas centrais debatidos no painel foi a interdependência entre conformidade legal e elegibilidade para seguros marítimos. Cada país ou região impõe requisitos específicos para a validade de apólices, especialmente nos ramos de casco e máquinas (hull & machinery), proteção e indenização (P&I), e seguros ambientais. Em muitos casos, a ausência de cumprimento pleno à legislação local pode invalidar parcialmente ou totalmente a cobertura securitária.
A título de exemplo:
- A não conformidade com a Convenção Internacional para Prevenção da Poluição por Navios (MARPOL) pode gerar recusas de cobertura em sinistros ambientais, mesmo que o navio esteja em conformidade com sua bandeira;
- Países que não aderem a convenções internacionais — como os Estados Unidos, em relação à Convenção de Limitação de Responsabilidade (LLMC) — impõem regimes de responsabilidade civil mais rigorosos, pressionando operadores e seus seguradores a estipular coberturas adicionais ou específicas para determinadas jurisdições.
A implicação é clara: a navegação internacional exige conhecimento jurídico profundo, gestão de risco integrada e compliance operacional contínuo.
Os Desafios da Harmonização Regulatória – A disparidade entre legislações — regionais, nacionais e internacionais — gera incerteza jurídica e operacional. Há casos em que a mesma operação exige duplicação de registros, comunicações a múltiplas autoridades e certificações distintas para um mesmo procedimento técnico.
Entre os desafios mais recorrentes estão:
- Falta de interoperabilidade entre sistemas eletrônicos de bandeiras e portos;
- Exigência de documentação física ou redundante, mesmo com dados já disponíveis em registros públicos;
- Interferência política e protecionismo regulatório, como no caso do Jones Act nos Estados Unidos, que restringe o uso de navios estrangeiros no comércio de cabotagem.
Riscos Emergentes e Impactos Futuros
As tendências apontam para uma intensificação da vigilância ambiental, maior responsabilização por bem-estar da tripulação e pressões por transparência fiscal. Esses fatores trazem novos riscos:
- Aumento das obrigações de reporte em tempo real, com margem zero para erro humano ou atraso;
- Maior exposição à litigância internacional, especialmente em sinistros envolvendo múltiplas jurisdições;
- Elevação dos prêmios de seguro, refletindo o custo de navegar em cenários jurídicos instáveis.
Se tais riscos não forem geridos estrategicamente, é possível antever uma redução da atratividade de determinadas bandeiras e portos, configurando rotas comerciais e redes logísticas internacionais.
Transformações Necessárias: Do Reativo ao Proativo
O painel propôs medidas estruturantes para reverter o atual panorama. Entre elas:
- Reengenharia legal colaborativa, envolvendo juristas, técnicos e armadores na redação de leis e regulamentos mais funcionais e interoperáveis;
- Criação de sistemas globais de dados partilhados, com certificações e cadastros válidos entre bandeiras reconhecidas;
- Instituição de janelas únicas portuárias digitais, que centralizam comunicações e autorizações com inteligência automatizada.
A transição de uma burocracia reativa para uma governança digital proativa é não apenas desejável, mas necessária. O setor marítimo deve buscar padrões semelhantes ao que ocorre em aviação internacional, onde a integração regulatória é a base da segurança e eficiência.
A crescente carga burocrática, somada à fragmentação legislativa, ameaça comprometer a eficiência global das cadeias logísticas. No entanto, os riscos identificados podem ser mitigados com reformas estruturais orientadas à harmonização, digitalização e cooperação internacional. O futuro exige não apenas modernização, mas uma mudança de paradigma: menos papel, mais dados; menos redundância, mais integração; menos reatividade, mais prevenção. Só assim será possível navegar entre a burocracia e a competitividade de forma segura, sustentável e eficiente.