Confira artigo de Paulo Roberto Vigna, Advogado, sócio do escritório Vigna Advogados Associados e da VignaTax Consultoria Fiscal e Tributária
As inundações ocorridas no Estado do Rio Grande do Sul no início do mês de maio até o presente momento afetaram aproximadamente 1,8 milhões de pessoas, com 76.200 casas danificadas e 9.100 destruídas em 446 municípios. Mais de 200.000 mil veículos também foram destruídos pelos alagamentos, o que já foi citado pela imprensa como o maior incidente com sinistro de toda a história dos seguros no Brasil, o que nos remete a uma série de questões.
Para compreender como seguradoras e segurados afetados pelas inundações exercerão seus direitos em um cenário tão calamitoso, é preciso que tenhamos em mente que o contrato de seguro é, em apertada síntese, um instrumento de transferência de riscos. Ou seja, as pessoas pressupõem a probabilidade de alguma espécie de risco e a respectiva perda, seja ela pessoal ou patrimonial, e buscam junto ao mercado proteção para as consequências dos potenciais acontecimentos. Assim, as apólices de seguro são concebidas para suportar determinados tipos de perda independente de suas causas, salvo em casos específicos de exclusão.
A utilização do contrato de seguro como forma de transferência de riscos, desta forma, costuma possuir algumas características. A diluição do risco entre as partes ao mesmo tempo que permite a sua segregação, viabiliza o encorajamento de medidas de mitigação e o desenvolvimento de ferramentas de monitoramento e controle. Mas com vistas a abordar tal instrumento nos casos de eventos extremos, devemos esclarecer qual espécie de seguro é adotado e seus traços mais distintivos.
Os contratos de seguro de responsabilidade civil costumam ser adotados nos casos de desastres advindos das atividades humanas (man-made disasters), e no caso de um sinistro, a seguradora poderá investigar suas circunstâncias. Já no caso de desastres naturais (first party insurance), como inundações, furacões e terremotos, por exemplo, a cobertura do seguro é disparada pela ocorrência do dano, e não por ação ou omissão ligadas a responsabilidade.
Neste tipo de seguro a companhia seguradora efetua o pagamento da indenização devida tão logo ocorra o dano suportado pela apólice, desde que esteja notório e claramente configurado o dano específico segurado pelo contrato. Existe uma vantagem nesta espécie de contratação: a seguradora consegue cobrar valores menores em razão da grande diluição do risco e das reduzidas chances de implementação dos eventos extremos. Todavia, levando-se em conta as incertezas climáticas e a recorrência de determinados acontecimentos, é preciso reavaliar os cenários e paradigmas.
Nos últimos anos, o mercado securitário tem sido forçado a encarar questões sociais, econômicas e geográficas mais do que o usual no momento de estabelecer suas margens de lucro, custos, clientela e produtos de suas carteiras. Questões como a vulnerabilidade climática e a ausência de investimento do Poder Público em infraestrutura, têm concorrido decisivamente para o incremento dos sinistros, como ocorreu nas enchentes de maio de 2024 no estado do Rio Grande do Sul.
Questões muito comuns em países em desenvolvimento como o Brasil, tais como a urbanização irregular de locais de risco, a escassa fiscalização da ocupação do espaço urbano, o adensamento populacional em tais localidades e a deficiência de infraestrutura e planejamento, impactam fortemente nos danos patrimoniais e nas mortes advindas de eventos naturais extremos.
Os sinistros oriundos de tais eventos impactam não só as seguradoras e os segurados, mas também a sociedade civil como um todo e o Estado. Abrigos temporários são utilizados para receber as vítimas dos desastres e o Estado toma parte na organização do auxílio aos desabrigados e nos esforços de reconstrução. Nestes casos, estamos diante de sinistros de consequências provavelmente devastadoras para os segurados, sendo essencial compor uma relação de equilíbrio entre o ressarcimento das perdas, a continuidade das operações das seguradoras e as entidades públicas.
Em especial em nosso país, as questões envolvendo inundações e desabamentos são relevantes e recorrentes, considerando a vulnerabilidade hídrica de muitos municípios, como ocorre com frequência no sul, sudeste e nordeste. Desta forma, tendo em mente que eventos climáticos extremos tem se repetido com cada vez mais frequência e intensidade, quais seriam os caminhos para a viabilidade do setor de seguros?
Nos casos de valores muito elevados é comum a utilização de resseguros, estruturas securitárias de alavancagem financeira que permitem a transferência, total ou parcial, dos riscos assumidos em uma, ou um conjunto, de apólices. Isso permite que a seguradora original mantenha sua liquidez e atenda aos interesses dos segurados. É possível, também, a transferência e diluição dos riscos em operações no mercado de capitais com vistas a fortalecer a posição das seguradoras.
O Projeto de Lei nº 1.410/2022, em trâmite no Congresso Nacional, pretende dispor sobre o Seguro Obrigatório de Danos Pessoais e Materiais causados por desastres naturais relacionados a chuvas. Em sua redação atual, o direito à indenização dependerá do reconhecimento do desastre ambiental como calamidade pública pela autoridade competente, e da demonstração de nexo causal entre o desastre e o dano sofrido, na forma do regulamento a ser expedido.
Prevê ainda o Projeto de Lei, que o seguro será administrado por seguradora regularmente habilitada perante a Superintendência de Seguros Privados (Susep) ou por consórcio de seguradoras habilitadas para essa finalidade específica, e seu respectivo prêmio arrecadado será repassado diretamente e sem qualquer retenção.
A conjuntura é de difícil composição, mas não impossível. É preciso, contudo, que iniciativa privada, em especial as grandes companhias seguradoras e os órgãos reguladores, tais como a Susep, que se preparem com urgência para a repetição dos acontecimentos no Rio Grande do Sul.